Carlos Morgadinho
Durante os 49 meses que servi as Forças Armadas em Angola, passei por muitas situações, umas hilariantes, outras de terror e algumas de grande impotência e frustração. Tenho muitas dessas memórias, enclausuradas num compartimento do meu cérebro, que voltam, de tempos a tempos, para me atormentar. Claro que não foram aquelas em que, por 11 vezes, estive debaixo de fogo do inimigo. Assustou-me deveras, não digo que não mas foi uma outra situação passada no Hospital Militar de Luanda onde um companheiro e camarada de recruta, o Romeu, mais conhecido pela alcunha de "Risota" estava acamado por ferimentos graves sofridos em combate, que me abalou deveras.
Dele, então, sei apenas que era natural de Benguela e, durante aqueles meses de recruta, criou amizades sólidas entre os seus companheiros. Penso até que não havia ninguém que não gostasse do seu trato dócil. Até os nossos instrutores e oficiais, exceptuando o sargento Canguru (olvidei o seu nome mas também não estou muito preocupado em o recordar) quando lhe davam alguma ordem ou missão era sempre com palavras amáveis e respeitosas.
Terminada a recruta mais de 90% dos soldados foram transferidos para outras unidades para preenchimento de vagas por doença, férias, ferimentos e até mortes como também eram "emprestados" para grandes operações de quadricula nas savanas ou florestas daquele país africano.
Romeu foi transferido para os Dragões, unidade de carros de combate, e uma das muitas missões deste grupo aquartelado em Luanda era dar escolta aos civis ou reabastecimentos na área dos Dembos ao norte da capital de Angola.
Perto do Natal, de 1964, creio estar certo no ano, recebo a noticia de que o nosso Romeu estava no Hospital Militar em estado lastimoso. Desloquei-me de imediato aquele centro hospitalar e lá perguntei onde se encontrava o Romeu.
Foi-me dito estar em franca recuperação e já próximo da enfermaria onde se encontrava aquele camarada o enfermeiro que me acompanhava, parou e chamou-me atenção que o Romeu, além de diversos ferimentos, estava cego.
Tinha perdido os dois olhos na explosão duma mina acionada pelo seu jeep e que tinha fulminado, em peças, o seu condutor. Pediu-me também para não focar a situação na conversa que iria ter com o Romeu pois este não sabia ainda que se encontava invisual.
Entrei no quarto onde estava aquele meu amigo com um outro ferido grave…
Falei para ele e identifiquei-me pois a cabeça estava cheia de ligaduras só tendo a boca e já sem dentes, toda queimada, e claro que não podia, mesmo se tivesse olhos, de me ver. Após meia hora de conversa o Romeu perguntou-me de rompão se tinham apagado as luzes do quarto pois de repente apercebeu-se que tudo estava às escuras. Penso que este foi o momento mais dramático da situação. Menti dizendo que sim mas que também já era muito próximo das 18 horas, que em África a noite cai quase de repente.
Romeu, de pé, o primeiro a contra da direita para a esquerda
Despedi-me. Encorajei-o e dei-lhe um largo abraço fraterno e prometi quando ele saísse do hospital iriamos apanhar uma "piela" das antigas...
Esta promessa nunca se cumpriu pois dias depois, quando voltei para o ver mais uma vez, o Romeu tinha sido transferido para o Hospital Militar Principal, na cidade de Lisboa. Nunca mais ouvi falar deste fantástico camarada e amigo.
Eramos quase como irmãos e ele tinha o gosto pelas anedotas e brincadeiras coisa que eu, confesso, também comungo.
Só que gostava de focar que após ter saído do quarto chorei, no corredor, sozinho, amargamente, quase em desespero, confortado apenas pela passagem casual daquele militar, furriel enfermeiro, que me tinha indicado o quarto. A dor e a tristeza sentida foi grande e, naquele momento de desespero, fui mais uma vez corrompido pela revolta feroz do meu ódio à política de Salazar por não pôr um fim definitivo a este conflito armado que tantas e tantas vidas ceifou, deixando atrás um "tapete" de feridos e estropiados, ao longo daqueles 4 anos de guerra. Foram anos de luta para salvaguardar e manter o ´status quo´ dumas quantas firmas e clãs poderosos, seus monopólios, que controlavam, colonizavam e exploravam esses povos, desde os primórdios da colonização.
O mais triste e caricato é que Portugal chamava pomposamente a essas colónias, de "Províncias Ultramarinas", sem, obviamente, trazer nenhum beneficio para mais de 95% dos portugueses. E esta situação de ocupação, prepotência e esclavagismo arrastava-se então, teimosamente e sem oposição, por mais de cinco séculos...
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